A viagem (por Immortal X)
Ela está em um ônibus. Passam ruas, árvores, casas e apartamentos, assim como carros velhos, novos, velozes e também mortais... É... mortais, como aquele que invadiu a casa, sem pedir licença, e levou as crianças pra longe, muito longe...
O balanço do ônibus é hipnotizante, leva os sentidos, traz o sono. Ele vai na noite, pelas ruas desertas... Assim como o seu coração.
Ela está sentada no último banco do ônibus quase vazio e pode observar tudo o que acontece. É um daqueles modelos novos em que os bancos são laterais, fazendo com que as pessoas fiquem de frente umas com as outras, causando um certo constrangimento. Estão todos calados, olhando para baixo, para os lados, como que temendo um contato direto, olho no olho. O único som que se ouve é o ruído do motor.
São sete os passageiros sem contar o motorista e o cobrador. Três pessoas dormem, com suas cabeças encostadas no vidro da janela; um casal de velhos, ele com o olhar perdido em algum ponto do espaço, e ela chorando silenciosamente, as lágrimas escorrendo pela face; um jovem de fisionomia oriental que parece perdido em meio as suas apostilas de química, física e matemática; e ela, um tanto sonolenta, mas obrigando-se a ficar desperta, pois tem medo de passar do ponto. Este é o último ônibus e a idéia de andar pelas ruas escuras e desertas não a atrai.
De repente, algo inesperado a faz perder totalmente o sono. Seu coração pára por um instante... Estremece. A passageira que acaba de entrar no ônibus... Ela é... como um espelho vivo. As duas são iguais! Como irmãs gêmeas, não... mais do que isso, o ser que acaba de entrar é uma cópia perfeita dela.
Estarrecida, ela olha ao redor, tentando compartilhar seu espanto, mas as pessoas não parecem ver nada além de seus narizes e suas dores.
É com muito custo que ela cria coragem para olhar para lá de novo. E quando o faz, o ser está a observá-la, sorrindo. Uma sensação de irrealidade toma conta dela, tudo parece se transformar em uma atmosfera de sonho.
O ser se aproxima e senta ao seu lado. Começam a conversar, como se fossem velhas amigas. Ela não pergunta o seu nome... Algo diz que não é preciso, assim como o ser não pergunta o dela.
As palavras fluem, num ritmo intenso, livre e ela perde a noção do tempo. Quando dá por si, o ônibus está a passar por um lugar desconhecido. Ela deveria ter descido a uns três pontos atrás. Olha no relógio: meia noite. Já passou do horário de estar em casa, mas o fato parece não ter importância agora.
Há um entrosamento perfeito entre elas. Ela fala de coisas que sempre moraram em seu coração, mas que nunca tiveram força de se transformar em palavras. Sente-se confiante e à vontade com aquele ser, como se fosse a amiga que sempre sonhara ter, alguém a quem pudesse contar tudo... Uma expansão do seu eu.
Ela diz que vai descer no ponto final e pegar um táxi pra casa, e neste instante percebe um olhar de desaprovação.
Fica na dúvida... Será que deve mesmo fazer isso?
Pensa, pensa tanto que a idéia de ir pra casa lhe parece absurda agora, e imagina se algum dia teve uma realmente. Mas isso não parece importar agora... A palavra casa parece ter perdido o significado.
Olha pela janela, a paisagem é totalmente estranha.
O tempo passa, e ela continua a falar e a falar até as palavras, todas, perderem o sentido.
O dia amanhece. No ônibus apenas as duas, o motorista e o cobrador.
Ela se pergunta se existe um ponto final.
"Será que não seria melhor descer?" pergunta ao ser, mas não recebe resposta. Ela pensa: "Ah..ela dormiu durante o meu falatório interminável". Gentilmente ela tenta acordá-la, mas não consegue. Um pouco assustada começa a sacudi-la levemente, em vão... Seu desespero vai crescendo, crescendo e quanto dá por si, está sacudindo-a freneticamente.
Ela pára subitamente, e tem medo de pensar no óbvio. Tenta sentir a respiração, e nada.
Está morta...
É indescritível a tristeza que a invade. Ela chora, chora muito. Como se chorasse sua própria morte. Chora até as lágrimas perderem o sentido.
Perde a noção do tempo. Quanto se passou? Um dia?
Percebe, de repente, que está só no ônibus. O corpo, o motorista e o cobrador sumiram, sem que ela notasse. O ônibus anda sozinho, numa velocidade constante, por uma estrada estranha, desolada.
Olhando com atenção, ela pode ver que nas pedras que compõem a paisagem, existem pessoas sentadas. Mas ela não consegue ver os seus olhos, nem nada. Ela não consegue ver os seus rostos.
São pessoas sem identidade.
O ônibus então pára bruscamente. Antes de descer ela olha no espelho retrovisor pra dar uma arrumada no cabelo. E então ela vê...
Seu rosto não está mais lá.
Ela está igual aos outros, sem expressão e fria.
E este fato não a deixa chocada.
O passado e o futuro passam a ser o momento presente. Se antes existiu algo, alguém, ou algum sentimento, ela não sabe.
Quando vê, está sentada numa pedra, igual a todo mundo.
Não questiona o porquê. Afinal, agora nada mais importa...